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Por que mulheres são oprimidas?
Espaço Mulher
Publicado em 09/07/2024

E qual a relação da opressão da mulher com seu corpo?

 

É muito comum feministas falarem: a opressão da mulher está ligada ao nosso corpo. Ou: somos oprimidas e exploradas por conta de nossa biologia (porque temos vagina, ovário, úteros, vulva). Ou, ainda: a opressão da mulher está ligada à nossa capacidade reprodutiva (nossa habilidade/capacidade de engravidar, gestar e parir).

 

Essas não são proposições falsas, mas são incompletas; e justamente por serem ditas assim — “incompletamente” e sem mais nenhum contexto — feministas são acusadas de serem “biologicistas” ou “essencialistas” ou de — minha favorita pessoal, fruto da interpretação de mais má-vontade possível — que feministas naturalizam a opressão feminina.

 

Então vou tentar explicar aqui de forma breve.

 

Em primeiro lugar, todas essas explicações giram em torno da discussão: de onde vem a opressão das mulheres? Como e por que ela começou? Como e por que ela se mantém?

 

A versão resumida, resumidíssima, é: relacionamos a opressão e a exploração das mulheres com seus corpos porque é isso que fica evidente quando se faz uma análise histórica.

 

Analisando a história de tudo — a história do direito, a história da psiquiatria, a história da formação dos Estados modernos, a história do nascimento da medicina, a história da criminologia, a história do ciência, a história da filosofia, a história das religiões, a história da humanidade — as feministas constataram que a exploração das mulheres é a primeira e mais antiga forma de exploração. Mais do que só controlar a reprodução das mulheres para gerar mão de obra ou para garantir a manutenção da riqueza em determinada família — ou seja, numa sociedade na qual supostamente já existiria propriedade privada, como é a explicação marxista mais ortodoxa — , a exploração da mulher enquanto reprodutora, algumas feministas vão dizer, relaciona-se ao ato mais amplo e anterior de explorar e controlar a própria vida, retirando das mulheres essa “autoridade” sobre a vida.

 

O surgimento da agricultura, da propriedade privada, e o início da exploração das mulheres, portanto, acontecem todos ao mesmo tempo. Mas como se deu esse processo? O que aconteceu primeiro?

 

Feministas trabalham com a hipótese de que, primeiro, houve a troca de mulheres, tendo em mente sua capacidade de gerar mais seres humanos: mais seres humanos trabalhando para obter comida garante a sobrevivência do grupo. Como descreve Gerda Lerner,

 

As ferramentas neolíticas eram relativamente simples, então qualquer um poderia fabricá-las. Terras não eram recursos escassos. Assim, nem ferramentas nem terras representavam oportunidades para apropriação. Mas, em uma situação na qual condições ecológicas e irregularidades na reprodução biológica ameaçavam a sobrevivência do grupo, as pessoas procuravam mais reprodutores — ou seja, mulheres. A apropriação de homens, tais como prisioneiros (o que ocorre apenas em estágio posterior), não supriria as necessidades de sobrevivência do grupo. Portanto, a primeira apropriação de propriedade privada é a apropriação do trabalho de mulheres como reprodutoras. (Gerda Lerner, p. 109)

 

O início da exploração da mulher enquanto recurso — semelhantemente à exploração da terra enquanto recurso — se dá, assim, historicamente, em algum momento durante a revolução da agricultura no neolítico. Antes da agricultura — e pensem bem o que é agricultura, porque isso é importante: o ser humano controlando, dominando a natureza, deixando de estar à mercê dela para sua sobrevivência, como consequência do desenvolvimento tecnológico e da sua capacidade de observação do mundo — , evidências sugerem que a maior parte das primeiras sociedades eram matrilineares (isto é, quando se traça o parentesco tendo a mãe como referência) e matrilocais (isto é, quando quem se muda, quando o casamento ocorre, é o homem, para a casa da mulher — não confundir matrilinearidade e matrilocalidade com matriarcado!). Depois da revolução da agricultura, no entanto, a vasta maioria das civilizações tornou-se patrilinear e patrilocal — e o processo inverso (a passagem de uma sociedade da patrilinearidade/patrilocalidade para a matrilinearidade/matrilocalidade) simplesmente nunca aconteceu.

 

A mulher, então, nesse início, seria trocada (garantindo alianças e paz entre diferentes tribos/civilizações). Mais tarde, seriam compradas e vendidas e escravizadas, não só por sua capacidade reprodutiva (para efetivamente produzir pessoas), mas também por sua sexualidade (para servirem de escravas sexuais). Nas primeiras invasões de uma tribo pela outra, não se costumava escravizar homens ou fazê-los “prisioneiros de guerra”; eles eram mortos. As mulheres é que eram preservadas — e por quê?. A acumulação de mulheres — e de seu potencial reprodutivo — , então, possibilita maior produção de excedente; o que, por sua vez, possibilita o crescimento, a organização e a coesão da tribo de que participam para continuar crescendo e se expandindo. Em resumo, essa é a base do surgimento dos primeiros estados arcaicos.

 

A exploração da capacidade reprodutiva das mulheres também atravessa o surgimento do sistema escravista: as mulheres foram a primeira classe de pessoas escravizada; e vai servir de base para a própria sociedade de classes. O próprio capitalismo só pode surgir devido ao processo de acumulação primitiva que inclui a acumulação do potencial reprodutivo das mulheres por meio do controle de sua sexualidade.

 

A mecânica do patriarcado relaciona-se, portanto, ao fato de que mulheres produzem pessoas. A dinâmica do patriarcado relaciona-se ao controle da sexualidade. Esse processo de controle se complexificou ao longo da história, sendo institucionalizado pelas leis e pelas religiões; e, como a epistemologia feminista coloca, é um processo que também teve participação ativa das próprias mulheres.

 

A submissão aos homens também se relaciona a uma escolha por sobrevivência. Mulheres ao longo da história tiveram de escolher entre a própria liberdade e a subsistência de si (e, frequentemente, de suas crianças), e isso implica a cooperação com opressores. É preciso ter clareza para perceber, no entanto, que essa cooperação não significa que essas mulheres sejam privilegiadas ou sejam menos oprimidas. Mulheres sempre estiveram ligadas a seus opressores por laços de sexo. Homens dominam as relações de produção material e sexual: mulheres não.

 

Em qualquer momento específico na história, cada “classe” é constituída de duas classes distintas — homens e mulheres. A posição de classe das mulheres se tornou consolidada e estabelecida por meio de de suas relações sexuais. (…) Para os homens, a classe foi e é baseada em suas relações com os meios de produção: aqueles que detinham os meios de produção podiam dominar aqueles que não os detinham. Os donos dos meios de produção também adquiriam a mercadoria de serviços sexuais femininos, tanto de mulheres da própria classe quanto de mulheres de classes subordinadas. (…) Para as mulheres, a classe é mediada por meio de seus vínculos sexuais com um homem. É através do homem que as mulheres recebem ou perdem acesso aos meios de produção e a recursos. É por meio de seu comportamento sexual que ganham acesso à classe. “Mulheres respeitáveis” ganham acesso à classe por meio de pais e maridos, mas quebrar as regras sexuais pode rebaixá-las de classe. A definição sexual de “desvio” marca uma mulher como “não respeitável”, o que de fato confere a ela o mais baixo status social possível. (Gerda Lerner, p. 354–355)

 

Essa é a história das fêmeas humanas. A história das fêmeas humanas é a história da nossa exploração porque nós somos fêmeas. E nós somos sujeitos históricos: a sociedade em que vivemos hoje, da forma como vivemos hoje, não simplesmente surgiu do nada, como num big bang, a partir do vazio. É fruto de milhares de anos de construção histórica. Quatro mil anos de patriarcado parece muito tempo, mas a humanidade é muito, mas muito mais antiga do que isso (joga aí no google — “quando surgiu o homo sapiens”).

 

Identificar as raízes da nossa exploração num fato natural — o fato de gestarmos e parirmos — não é sinônimo de “naturalizá-la” ou “biologizá-la”. Pelo contrário: é colocar uma data de início no patriarcado e demonstrar, precisamente, que esse não é o modus operandi da espécie humana como um todo. Que o patriarcado surgiu em condições específicas, por razões específicas.

 

E a verdade é que o sexo segue sendo a razão primária de opressão e exploração da maior parte das mulheres ao redor do mundo. Essa coisa de querer “desconstruir” a classe feminina e de passar uma borracha em quatro mil anos de opressão é a coisa mais colonizadora e despregada da realidade que se poderia propor. Fatos são fatos:

 

Porque gestamos e parimos, estamos sujeitas a nem ter a chance de nascer (no caso dos feticídios). Porque gestamos e parimos e menstruamos e somos consideradas sujas e impuras por isso, estamos sujeitas a ter nossa genitália mutilada dentro dos nossos primeiros meses (às vezes, até dias) de vida. Porque menstruamos, gestamos e parimos, nosso acesso à educação é dificultado, porque quando estamos menstruadas precisamos de acesso a banheiros e saneamento básico. Porque menstruamos, somos colocadas em cabanas, em isolamento, em diversas partes do mundo. Porque temos vagina, somos estupradas, traficadas e exploradas sexualmente. Porque temos a presumida capacidade de gestar e parir, não somos consideradas um bom investimento para empresas, e recebemos menos, temos menos oportunidades de emprego, e demoramos infinitamente mais que os homens na mesma situação que nós para progredir na carreira. Porque gestamos e parimos, somos socialmente obrigadas a criar as crianças que saíram de nós, mesmo que contra nossa vontade, o que leva a um eterno empobrecimento, já que dificilmente podemos contar com homens para apoio financeiro. 

 

A opressão material das mulheres ainda não foi superada. Sabe por quê? Porque ainda precisam de nós para fazer seus bebês e ainda exploram nossa sexualidade como demonstração de poder.

 

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